Saturday, October 07, 2006

Retratos da vida


Orlando sempre foi bem-humorado. Levou a vida na maior leveza. Família unida, netos, bisnetos. Viúvo há dez anos, morreu, aos noventa. Terno azul-marinho, flor na lapela, sorriso nos lábios. Parecia até que ia casar.

Coisa de artista


Quando o canário preferido da criação parou de cantar todos queriam saber:
- Seu mimoso ficou mudo? Vai ver está emburrado!
Adão fez de tudo, até que comprou um Cd com pássaros cantando para ele ouvir.
Dois dias depois o canário voltou a cantar.
Qual a solução? Adão respondeu:
- Nada sério, ele só tinha esquecido a letra.

Quando não faz diferença


Elza é uma mulher exemplar. A casa sempre arrumada, aconchegante. Os doces que ela faz? Deliciosos. Ambrósia, papo-de-anjo, tortas, pudim, tudo.
Eliseu não liga, nem para seus bordados.
Ela pede para comprar louças novas. Ele nega:
- Para mim não precisa nada disso, como em qualquer pote.
Mesa posta, toalha bordada, louça nova.
Para Eliseu, uma lata limpinha de goiabada cascão.

A primeira vez


Paulinho com treze anos, já sentia no corpo as mudanças da idade. Olhava as meninas com outros olhos. Os amigos, na maioria mais velhos, cobravam dele o primeiro contato com uma mulher.
Ele adorava andar de bicicleta e havia juntado um dinheiro para comprar pneus novos, selim e freios.
Os meninos exigindo uma atitude.
Resolveu pedalar até a zona. Ela até deixou guardar a bicicleta no quarto. Foi rápido, sem muita graça.
Ele ainda tem dúvida se não devia ter comprado os acessórios para a bicicleta.

A primeira virtude teologal


A morte, quando for hora ela virá, inevitável é o que Cláudio sempre dizia. A mãe a recomendar: - Vá com Deus meu filho, que Ele te proteja.
E o filho:
- Bobagem, na hora da morte Ele está do outro lado, chama, não empurra de volta.
Na noite de pescaria a chuva apertou, motor quebrado, temporal. Ficou horas agarrado na caixa de isopor das iscas até ser salvo.
Agora quando sai, a mãe abençoa e ele:
- Amém!

O amor é que manda

João era solteiro convicto. Não casaria nunca, só namoro, era do que se orgulhava. Tinha tudo, casa, carro, bom salário. A Maria soube ver tudo isso e embora já separada e com um filho, engravidou do João. Ele casou, ela era doce, seria uma boa esposa. Mas depois do casamento ela assumiu o comando e as exigências. Queria tudo!
Quando ela ligava para ele no trabalho querendo mais alguma coisa ele era firme e fazia questão de dizer não para todos no escritório ouvirem.
Na volta do almoço em casa, era outro, já ia dizendo, concedi para não me incomodar.


Foto: Marjolein Bastin

Pesquisa particular

Onze da noite, ninguém na parada. Noite fria ninguém saí. O ônibus demora, um sujeito se aproxima. Espera. Puxa assunto sobre o ônibus, a demora, a política. Pergunta:
- É a favor ou contra o desarmamento.
Pedro responde que é contra.
O estranho pergunta:
- Tem arma?
- Não, é claro.
Então isso é assalto, passa a carteira e celular. Isso aqui é um trinta e oito e está carregado.


Foto: Ian Briton

Entrega total

Beto é entregador de pizza à noite e documentos durante o dia. Chuva ou sol, trânsito, troco, reclamação. A vida é só rotina.
Quarta-feira, última entrega, é mussarela, portuguesa, quatro queijos, com bordas recheadas. Amanda, apartamento 64.
Ela atende nua. Linda! Perfume de flor, boca de anis.
Mudança de planos, ele esquece de cobrar a pizza.

Foto: Ian Britton

Confissão



Clara tinha nove anos e foi fazer a catequese para a primeira comunhão. Não sabia o que era pecado, um conceito que não existia na simplicidade da sua casa. Amar e cumprir seus deveres era coisa natural. Mas o padre exigiu a confissão, ninguém era livre de culpa. Clara então cometeu seu primeiro pecado - inventou alguns, para contentar o vigário.


Foto: Marjolein Bastin

Oferta irrecusável

Anúncio: Procura-se jovem com paciência e vontade aprender. Ávido por boas histórias. Que goste de ouvir e contar. Que aprecie o sol das manhãs ou a calmaria dos fins de tarde.
Local: Asilo Nossa Senhora das Dores.
Falar com João.
Salário: Amizade das boas, totalmente concreta, nada de virtual.


Foto: Marjolein Bastin

Distância intransponível



Sempre viveu afastada da família. Morando no interior, os contatos eram por carta.
Um telegrama avisou da morte do irmão.
Na capital, o velório com muita gente, amigos, colegas de trabalho. Ao contrário do que ela pensava, ele era muito querido. Teve vergonha de aproximar-se do caixão. Só na saída leu a placa e viu que estava na capela errada. João fora enterrado meia hora antes. Segundo o coveiro, ninguém compareceu.


Foto: Marjolein Bastin

Verdade acima de tudo

Era um marido exemplar. Ótimo pai também. Todos da família gostavam do Peçanha. Ele que fazia o churrasco de domingo, ele visitava todos os parentes, ele levava a sogra para passear. Eventualmente ele dava umas saídas, quando perguntavam aonde ia:
- Na casa da Flávia, minha amante.
Todos riam. Tinha também um ótimo humor.
Então Peçanha sofreu um acidente de carro e ficou muito mal, quase morreu. No hospital encontraram-se as duas famílias. Flávia tinha dois filhos com Peçanha.
Era honesto, nunca mentiu, nem todos acreditaram.


Foto: Marjolein Bastin

Não comeu pelas beiradas

O que ele mais desejava era a morte do chefe.
Não tinha outro jeito, as opções de qualquer entendimento estavam esgotadas. Se fosse só apertar em um botão ele já teria apertado.
Todas as manhãs olhava o necrológio. Nada, não morreu ainda.
Domingo alguém tocou a campanhia logo cedo. Levou dois tiros na cara.
A raiva do chefe era maior.


Foto: Marjolein Bastin

O lado bom da vida

Viúvo, setenta e dois anos.
Apaixonado pela vida e por Anita.
Que morena! Tão bonita que não dava para acreditar que ela era somente sua. Por isso contestou a paternidade do menino. Mas o DNA foi implacável: 99% de certeza.
Aceitou a pensão imposta pelo juiz sem reclamar. Sorriu feliz e pediu uma cópia do teste para exibir aos amigos.


Foto: Marjolein Bastin

Vida dupla


Na rua ela era Sherazade.
Adorava contar histórias e contou uma diferente a cada noite.
Na quinta-feira o ciúme tomou o coração do marido e ele seguiu escondido para ver onde ela ia.
Morreu de tiro, na entrada do motel.


Foto: Marjolein Bastin

Que seja eterno enquanto dure

Casou cedo. Ao marido sempre prestou a maior obediência.
Ele saboreava com prazer essa autoridade. Deixava todo dia a quantia certa para as compras e conferia tudo após o jantar, que era servido na hora e perfeito.
O que dava mais trabalho a ela era limpar o pátio e recolher as goiabas maduras que caiam da árvore favorita do marido.
Um dia ele morreu. Na volta do velório todos vieram confortá-la.
Ela trocou de roupa e cortou a goiabeira.


Foto: Ian Britton

Surpresa da vovó

Oitenta anos de uma vida tranqüila. Os filhos bem criados, casados e com bom emprego. Não muito presentes é certo. Almoços em alguns domingos, nas datas especiais, telefonemas. Os netos seguem os pais.
De repente, aparecem com um belo presente, com cartão e tudo.
Em plena quinta-feira.
Sorriso amarelo, abraços. Ela pensa:
- Não convém arriscar, melhor marcar uns exames com meu médico para o dia seguinte.

Coisas da vida ou da morte


Ninguém gosta de velório mesmo.
Muitas vezes ele inventou desculpas para não comparecer. Depois mandava um telegrama de condolências. Só o Mariano, seu melhor amigo que lhe obrigava a ir. Dizia que era obrigação. Fazia questão de acompanhá-lo mesmo se não conhecesse o morto.
Mas naquele dia Mariano não apareceu.
Sacanagem, teve que ir sozinho. Ao próprio velório não poderia faltar.

Parceiros de infortúnio



Eram amigos desde crianças. Fanáticos!
Um por política, o outro por futebol. Tinham algo em comum: gostavam de folgar com os deslizes de seus preferidos.
Mas o time estava agora na segunda divisão e o partido envolvido em graves falcatruas.
- Perdemos por dois a zero.
- Uma coisa eu sei: estou sem candidato.
- Calma companheiro, quem hoje bate, amanhã apanha. Mas quem paga mesmo é a torcida.


Foto: Ian Britton

Gelo nem sempre é neve

Carlinhos sempre quis ver neve. Adorava trenó.
Mas neve era impossível, mesmo no sul. Já um trenó...
Dois dias catando madeira e feito. No lugar das renas os cachorros da vizinhança. Na descida da lomba as parelhas se engalfinharam, foi duro para separar.
O castigo mais rigoroso, nada de televisão e toda a rua lhe virando a cara.
Gelo total.


Foto: Ian Britton

A outra


Ai meu amor, pega. Por favor!
Estou todo bonito só pra ti.
E só podemos hoje que é sábado e ela está trabalhando.
Pega, vai?
É prazer garantido, pura emoção.
Vou acabar te trocando por outra.
Tempo esgotado, estarás nos classificados de domingo.
A próxima será suzuki.

Lembranças


Na cadeira ela tricota e observa a família.
Eles brigam e ela pensa: têm muito que aprender.
Eles riem, ela sorri com ternura.
Se alguém fica doente, ela vigia.
Nada foge ao seu controle na casa. O sol que entra pela janela, a comida no fogão, as brincadeiras das crianças.
De repente, um neto pergunta:
- Mãe, quanto tempo faz que a vó morreu?

A vida é agora


Sexta-feira, fim de tarde.
Na parada do centro muitos idosos trancam a entrada.
O motorista quase prende um na porta.
- Tenha paciência meu filho. Quando eu morrer e for para o céu, prometo ficar na portaria. Facilitarei a entrada do amigo.
Domingo de madrugada, assalto no coletivo.
Não deu tempo, ninguém na portaria.

Muralhas da infância



O muro é alto.
Do outro lado outro mundo. Com pitanga, laranja madura, goiaba.
E a bola de futebol.
A gurizada incentiva: vai, não desiste.
Acelero no cinamomo e freio no cachorro do general.