Orlando sempre foi bem-humorado. Levou a vida na maior leveza. Família unida, netos, bisnetos. Viúvo há dez anos, morreu, aos noventa. Terno azul-marinho, flor na lapela, sorriso nos lábios. Parecia até que ia casar.
Quando o canário preferido da criação parou de cantar todos queriam saber:
- Seu mimoso ficou mudo? Vai ver está emburrado!
Adão fez de tudo, até que comprou um Cd com pássaros cantando para ele ouvir.
Dois dias depois o canário voltou a cantar.
Qual a solução? Adão respondeu:
- Nada sério, ele só tinha esquecido a letra.
Elza é uma mulher exemplar. A casa sempre arrumada, aconchegante. Os doces que ela faz? Deliciosos. Ambrósia, papo-de-anjo, tortas, pudim, tudo.
Eliseu não liga, nem para seus bordados.
Ela pede para comprar louças novas. Ele nega:
- Para mim não precisa nada disso, como em qualquer pote.
Mesa posta, toalha bordada, louça nova.
Para Eliseu, uma lata limpinha de goiabada cascão.
Paulinho com treze anos, já sentia no corpo as mudanças da idade. Olhava as meninas com outros olhos. Os amigos, na maioria mais velhos, cobravam dele o primeiro contato com uma mulher.
Ele adorava andar de bicicleta e havia juntado um dinheiro para comprar pneus novos, selim e freios.
Os meninos exigindo uma atitude.
Resolveu pedalar até a zona. Ela até deixou guardar a bicicleta no quarto. Foi rápido, sem muita graça.
Ele ainda tem dúvida se não devia ter comprado os acessórios para a bicicleta.
A morte, quando for hora ela virá, inevitável é o que Cláudio sempre dizia. A mãe a recomendar: - Vá com Deus meu filho, que Ele te proteja.
E o filho:
- Bobagem, na hora da morte Ele está do outro lado, chama, não empurra de volta.
Na noite de pescaria a chuva apertou, motor quebrado, temporal. Ficou horas agarrado na caixa de isopor das iscas até ser salvo.
Agora quando sai, a mãe abençoa e ele:
- Amém!
João era solteiro convicto. Não casaria nunca, só namoro, era do que se orgulhava. Tinha tudo, casa, carro, bom salário. A Maria soube ver tudo isso e embora já separada e com um filho, engravidou do João. Ele casou, ela era doce, seria uma boa esposa. Mas depois do casamento ela assumiu o comando e as exigências. Queria tudo!
Quando ela ligava para ele no trabalho querendo mais alguma coisa ele era firme e fazia questão de dizer não para todos no escritório ouvirem.
Na volta do almoço em casa, era outro, já ia dizendo, concedi para não me incomodar.Foto: Marjolein Bastin
Onze da noite, ninguém na parada. Noite fria ninguém saí. O ônibus demora, um sujeito se aproxima. Espera. Puxa assunto sobre o ônibus, a demora, a política. Pergunta:
- É a favor ou contra o desarmamento.
Pedro responde que é contra.
O estranho pergunta:
- Tem arma?
- Não, é claro.
Então isso é assalto, passa a carteira e celular. Isso aqui é um trinta e oito e está carregado.Foto: Ian Briton
Beto é entregador de pizza à noite e documentos durante o dia. Chuva ou sol, trânsito, troco, reclamação. A vida é só rotina.
Quarta-feira, última entrega, é mussarela, portuguesa, quatro queijos, com bordas recheadas. Amanda, apartamento 64.
Ela atende nua. Linda! Perfume de flor, boca de anis.
Mudança de planos, ele esquece de cobrar a pizza.
Foto: Ian Britton
Clara tinha nove anos e foi fazer a catequese para a primeira comunhão. Não sabia o que era pecado, um conceito que não existia na simplicidade da sua casa. Amar e cumprir seus deveres era coisa natural. Mas o padre exigiu a confissão, ninguém era livre de culpa. Clara então cometeu seu primeiro pecado - inventou alguns, para contentar o vigário.Foto: Marjolein Bastin
Anúncio: Procura-se jovem com paciência e vontade aprender. Ávido por boas histórias. Que goste de ouvir e contar. Que aprecie o sol das manhãs ou a calmaria dos fins de tarde.
Local: Asilo Nossa Senhora das Dores. Falar com João.
Salário: Amizade das boas, totalmente concreta, nada de virtual.
Foto: Marjolein Bastin
Sempre viveu afastada da família. Morando no interior, os contatos eram por carta.
Um telegrama avisou da morte do irmão.
Na capital, o velório com muita gente, amigos, colegas de trabalho. Ao contrário do que ela pensava, ele era muito querido. Teve vergonha de aproximar-se do caixão. Só na saída leu a placa e viu que estava na capela errada. João fora enterrado meia hora antes. Segundo o coveiro, ninguém compareceu.Foto: Marjolein Bastin
Era um marido exemplar. Ótimo pai também. Todos da família gostavam do Peçanha. Ele que fazia o churrasco de domingo, ele visitava todos os parentes, ele levava a sogra para passear. Eventualmente ele dava umas saídas, quando perguntavam aonde ia:
- Na casa da Flávia, minha amante.
Todos riam. Tinha também um ótimo humor.
Então Peçanha sofreu um acidente de carro e ficou muito mal, quase morreu. No hospital encontraram-se as duas famílias. Flávia tinha dois filhos com Peçanha.
Era honesto, nunca mentiu, nem todos acreditaram.Foto: Marjolein Bastin
O que ele mais desejava era a morte do chefe.
Não tinha outro jeito, as opções de qualquer entendimento estavam esgotadas. Se fosse só apertar em um botão ele já teria apertado.
Todas as manhãs olhava o necrológio. Nada, não morreu ainda.
Domingo alguém tocou a campanhia logo cedo. Levou dois tiros na cara.
A raiva do chefe era maior.Foto: Marjolein Bastin
Viúvo, setenta e dois anos.
Apaixonado pela vida e por Anita.
Que morena! Tão bonita que não dava para acreditar que ela era somente sua. Por isso contestou a paternidade do menino. Mas o DNA foi implacável: 99% de certeza.
Aceitou a pensão imposta pelo juiz sem reclamar. Sorriu feliz e pediu uma cópia do teste para exibir aos amigos.Foto: Marjolein Bastin
Na rua ela era Sherazade.
Adorava contar histórias e contou uma diferente a cada noite.
Na quinta-feira o ciúme tomou o coração do marido e ele seguiu escondido para ver onde ela ia.
Morreu de tiro, na entrada do motel.Foto: Marjolein Bastin
Casou cedo. Ao marido sempre prestou a maior obediência.
Ele saboreava com prazer essa autoridade. Deixava todo dia a quantia certa para as compras e conferia tudo após o jantar, que era servido na hora e perfeito.
O que dava mais trabalho a ela era limpar o pátio e recolher as goiabas maduras que caiam da árvore favorita do marido.
Um dia ele morreu. Na volta do velório todos vieram confortá-la.
Ela trocou de roupa e cortou a goiabeira.Foto: Ian Britton
Oitenta anos de uma vida tranqüila. Os filhos bem criados, casados e com bom emprego. Não muito presentes é certo. Almoços em alguns domingos, nas datas especiais, telefonemas. Os netos seguem os pais.
De repente, aparecem com um belo presente, com cartão e tudo.
Em plena quinta-feira.
Sorriso amarelo, abraços. Ela pensa:
- Não convém arriscar, melhor marcar uns exames com meu médico para o dia seguinte.
Ninguém gosta de velório mesmo.
Muitas vezes ele inventou desculpas para não comparecer. Depois mandava um telegrama de condolências. Só o Mariano, seu melhor amigo que lhe obrigava a ir. Dizia que era obrigação. Fazia questão de acompanhá-lo mesmo se não conhecesse o morto.
Mas naquele dia Mariano não apareceu.
Sacanagem, teve que ir sozinho. Ao próprio velório não poderia faltar.
Eram amigos desde crianças. Fanáticos!
Um por política, o outro por futebol. Tinham algo em comum: gostavam de folgar com os deslizes de seus preferidos.
Mas o time estava agora na segunda divisão e o partido envolvido em graves falcatruas.
- Perdemos por dois a zero.
- Uma coisa eu sei: estou sem candidato.
- Calma companheiro, quem hoje bate, amanhã apanha. Mas quem paga mesmo é a torcida.Foto: Ian Britton
Carlinhos sempre quis ver neve. Adorava trenó.
Mas neve era impossível, mesmo no sul. Já um trenó...
Dois dias catando madeira e feito. No lugar das renas os cachorros da vizinhança. Na descida da lomba as parelhas se engalfinharam, foi duro para separar.
O castigo mais rigoroso, nada de televisão e toda a rua lhe virando a cara.
Gelo total.Foto: Ian Britton
Ai meu amor, pega. Por favor!
Estou todo bonito só pra ti.
E só podemos hoje que é sábado e ela está trabalhando.
Pega, vai?
É prazer garantido, pura emoção.
Vou acabar te trocando por outra.
Tempo esgotado, estarás nos classificados de domingo.
A próxima será suzuki.
Na cadeira ela tricota e observa a família.
Eles brigam e ela pensa: têm muito que aprender.
Eles riem, ela sorri com ternura.
Se alguém fica doente, ela vigia.
Nada foge ao seu controle na casa. O sol que entra pela janela, a comida no fogão, as brincadeiras das crianças.
De repente, um neto pergunta:
- Mãe, quanto tempo faz que a vó morreu?
Sexta-feira, fim de tarde.
Na parada do centro muitos idosos trancam a entrada.
O motorista quase prende um na porta.
- Tenha paciência meu filho. Quando eu morrer e for para o céu, prometo ficar na portaria. Facilitarei a entrada do amigo.
Domingo de madrugada, assalto no coletivo.
Não deu tempo, ninguém na portaria.
O muro é alto.
Do outro lado outro mundo. Com pitanga, laranja madura, goiaba.
E a bola de futebol.
A gurizada incentiva: vai, não desiste.
Acelero no cinamomo e freio no cachorro do general.